Série Especial Eu sou o SENHOR, teu Deus
Ele tinha dois meses quando chegou ao abrigo. Veio porque a mulher que o gerou não tinha condições de cuidá-lo. Tinha algo pior que separar-se da mãe? Sim! Foi diagnosticado com Aids. Era um menino lindo! A pele rosada não aparentava a doença grave que ameaçava a sua saúde. Ficou doente e foi hospitalizado em Porto Alegre/RS. Ficou 15 dias no hospital até melhorar a sua imunidade. Ele nasceu com uma carga viral muito alta. A mulher que o gerou não quis tomar os remédios que poderiam trazê-lo ao mundo sem nenhum resquício da doença dela. Nós, funcionários da Associação Benefi cente Evangélica da Floresta Imperial (ABEFI)* , oramos por ele e pedimos a misericórdia de Deus
O que você sentiu quando leu a história real de um menino acolhido em um abrigo da ABEFI em Novo Hamburgo/RS? Pena? Tristeza? Uma sensação estranha no peito? Colocou-se no lugar dele?
*Na época em que escreveu o texto, o autor ocupava o cargo de Diretor Geral da ABEFI.
O nosso Deus é um Deus misericordioso. Separada de Deus, a humanidade não tinha condições de restabelecer a aliança com Ele pelo seu esforço. Deus viu o sofrimento das pessoas e as suas vãs tentativas de se sentirem amadas por Ele e teve misericórdia!
A palavra misericórdia tem origem latina e é formada pela junção de miserere ‘ter compaixão’ e cordis ‘coração’. Misericórdia é sentir no coração a miséria do outro. A misericórdia de Deus é o ato de não nos castigar pelos nossos pecados como merecemos. A graça é Deus nos abençoando, apesar de não merecermos. A misericórdia é a libertação do julgamento, enquanto a graça é estender bondade aos pecadores. Misericórdia é aproximar os seus sentimentos dos sentimentos de alguém.
Mesmo com Deus presente neste mundo, em Jesus, muita gente não compreende a sua misericórdia, fruto do amor e que nos dá a possibilidade de nova vida. Em Jesus Cristo, pela fé, o perdão é ofertado por Deus como graça nascida na sua misericórdia. |
Deus, vendo que o caminho era difícil, abriu o seu coração misericordioso para a humanidade. É que, no coração de Deus, habita a misericórdia divina. É no seu coração que Deus sente a miséria das pessoas pecadoras, fracas, arrependidas, doentes, excluídas e todas aquelas que querem se encontrar com Deus e serem acolhidas por ele. O coração de Deus sentiu as dores da humanidade. Para sentir na pele a nossa miséria, habitou neste mundo, pisou na poeira da Galiléia na pessoa de Jesus Cristo. Nele, Deus escancara o seu coração ao mundo e demonstra todo o seu amor. Acolhe aos que tinham nada a oferecer, nem a Ele e nem a ninguém.
Em Cristo, Deus vem para dentro deste mundo e se compadece da situação humana, envolta em pecado, sofrimento, opressão, vaidade, desejos de poder, medo da morte... Um momento de Jesus neste mundo, narrado em Lucas 19.41-42, revela o coração misericordioso de Deus: Quando Jesus chegou perto de Jerusalém e viu a cidade, chorou com pena dela e disse: Ah! Jerusalém! Se hoje mesmo você soubesse o que é preciso para conseguir a paz, mas agora você não pode ver isso. As lágrimas de tristeza de Jesus revelaram o que se passava no coração de Deus. Só quem sente no seu coração a dor do outro derrama lágrimas de tristeza, como Jesus derramou, vendo a insensibilidade do povo de Jerusalém. É a miséria do outro doendo no coração de Deus!
Mesmo com Deus presente neste mundo, em Jesus Cristo, muita gente não compreende a misericórdia de Deus. A misericórdia é fruto do amor. A misericórdia de Deus nos dá a possibilidade de nova vida. Anteriormente, todos nós também vivíamos entre eles, satisfazendo as vontades da nossa carne, seguindo os seus desejos e pensamentos. Como os outros, éramos por natureza merecedores da ira. Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deunos vida com Cristo quando ainda estávamos mortos em transgressões – pela graça vocês são salvos (Ef 2.3-5). Em Cristo, pela fé, o perdão é ofertado por Deus como graça nascida na sua misericórdia.
Se Jesus vivesse no mundo de hoje seria o mestre do Twitter. As principais afirmações de Jesus cabem em 140 caracteres. Foi em menos de 140 caracteres que ele disse: Em seguida, tomou o cálice, deu graças, ofereceu-o aos discípulos e todos beberam. Então, lhes disse: ‘Isto é o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos’ (Mc 14.24). Jesus deu a sua vida para que a misericórdia de Deus atingisse todas as pessoas e abrisse a possibilidade de sermos salvos pela fé. Quem crer será salvo, afi rma Jesus. Encantadas com a possibilidade de salvação pela graça de Deus, as pessoas reconhecem a sua misericórdia.
No cenário de hoje, onde vivemos? Qual é o lugar desta afirmação de Jesus?
Uma leitura de cenário atual... Chegamos, no mundo ocidental, ao momento da supremacia do individualismo. Se, no passado, o grupo familiar, o clã, a tribo e, depois, o estado eram importantes, hoje o indivíduo é supremo. Ele decide o que fazer da sua vida. Quem dita a vida são o consumo e a produção da moda. O indivíduo não precisa mais da Comunidade, da Igreja ou qualquer instituição para se sentir pleno. Pode-se questionar se realmente o indivíduo está satisfeito, pois a plenitude de vida anunciada por Jesus passa longe da satisfação material e simbólica.
Nada melhor que este tempo de Advento e Natal para aceitarmos o convite do alimento da misericórdia e da graça de Deus e estendê-lo a quem quiser. Da manjedoura que acolhe Cristo à mesa da comunhão, Deus é misericórdia perdão e graça! |
Os bens, necessários para viver, são desejos criados pelo marketing, para, simbolicamente, causar a sensação de plenitude. Esse modo de viver a vida causa uma multidão de excluídos. As pessoas que têm acesso a um iPhone, ou seja, um celular da famosa Apple, querem ser identificadas por possuir o melhor dos aparelhos celulares. A Apple não vende celular. Ela vende status! Pessoas permanecem horas na fila para serem as primeiras a comprar uma novidade. Fazer parte deste grupo gera uma identidade mediada pelo bem material e o simbólico. A marca famosa lhes concede status e identidade inclusiva, sem compromisso, mas com identificação.
Os indivíduos têm dificuldades de participar de tudo o que gera compromisso com o outro. Clubes que têm sócios estão falindo em quase todas as cidades. Por que as pessoas não querem mais se associar para manter um clube para festas, bailes e piscinas? Porque querem a liberdade de escolher lugares diferentes. O baile do clube se transformou na ‘balada’ na casa de shows. A pessoa paga ingresso, se diverte e sai sem se comprometer com ninguém. Abandona-se o clube por causa do compromisso da mensalidade e da mesmice que gera se encontrar com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. O indivíduo prefere a liberdade de escolher o lugar para se divertir e a possibilidade de ser surpreendido pela convivência com pessoas desconhecidas.
As nossas Comunidades são diferentes dos clubes? Não é diferente o comportamento dos indivíduos nas Comunidades tradicionais. É difícil se comprometer com o próximo no cenário atual. Está no individualismo uma das principais razões para o sucesso da teologia da prosperidade. O indivíduo não se compromete com a Comunidade e recebe o que busca: satisfação para o seu jeito de viver dentro deste mundo.
Por que participar de uma Comunidade em que a Pregação do Evangelho da Misericórdia de Deus questiona o seu comportamento e propõe um compromisso com um estilo de vida contrário ao que propõe o mundo individualista da moda e do consumo? Tem lugar neste mundo um convite como foi feito em Isaías 55.1-3a?
O Senhor Deus diz: Escutem os que têm sede: venham beber água! Venham os que não têm dinheiro: comprem comida e comam! Venham e comprem leite e vinho, que tudo é de graça. Por que vocês gastam dinheiro com o que não é comida? Por que gastam o seu salário com coisas que não matam a fome? Se ouvirem e fizerem o que eu ordeno, vocês comerão do melhor alimento, terão comidas gostosas. Escutem-me e venham a mim, prestem atenção e terão vida nova.
Neste convite de Deus, tudo contraria o individualismo e os valores do cenário que ora vivemos. O convite é para as pessoas que têm sede e fome e não têm dinheiro. Ao contrário, na sociedade da supremacia do indivíduo, as pessoas que não têm dinheiro não têm acesso aos bens necessários e muito menos terão acesso aos bens que concedem inclusão e status. No texto de Isaías, tudo no convite de Deus é de graça!
A palavra graça soa estranha no mundo atual, mediado pelo dinheiro.
Quem ouvir e aceitar o convite terá o melhor alimento e comidas gostosas. O fundamental para as pessoas convidadas e que aceitam o convite é que terão nova vida. A sede passou! A fome se foi! A graça se instalou!
É para uma nova vida que Deus nos convida neste tempo de Advento e Natal. Diferente do convite do texto de Isaías, Deus não ordena, mas convida, movido pela sua misericórdia, a aceitarmos nova vida em Cristo. Na manjedoura, Jesus é protegido no lugar onde os animais comem. Na mesa em que os seres humanos se alimentam, Jesus oferece o seu corpo e o seu sangue para nos alimentar de misericórdia, graça e perdão. Na mesa da ceia, ele nos chama para uma nova vida. Somos chamados e chamadas a deixar de lado os símbolos da moda, do consumo e da exclusão social por falta dos bens materiais.
Jesus nos chama para nos unirmos em Comunidade e nos comprometermos com o nosso próximo. Esse compromisso se estende ao compromisso com a Criação. Este cenário construído pelo individualismo precisa transformação não só porque exclui, mas porque nega a necessidade de Deus. A tarefa da Igreja de Cristo é apresentar o Cristo como o coração aberto de Deus para que todos sintam no seu coração a misericórdia acolhedora do Pai.
Nada melhor que este tempo de Advento e Natal para aceitarmos o convite e estendêlo a quem quiser ouvir. Vamos convidar os ‘fora de moda’ e os ‘sem bens’ que querem se alimentar da misericórdia e da graça de Deus. Da manjedoura que acolhe Cristo à mesa da comunhão, Deus é misericórdia perdão e graça!
A resposta à nossa oração! Em quatro meses, o nosso menino acolhido foi mais algumas vezes ao hospital, mas a nossa oração foi ouvida e a misericórdia de Deus se fez presente. Um casal adotante, há anos na fila de espera, chegou ao lar para uma visita. Estavam informados pelo Juizado que o menino tinha Aids. Eles olharam embevecidos para o menino e o abraçaram. É nosso filho! Vamos amá-lo como nunca foi amado! Vamos cuidar dele para sempre!
A nossa oração foi atendida e hoje temos notícias de uma família feliz e de um menino que encontrou amor, encontrou misericórdia! Se recebemos a misericórdia de Deus, devemos olhar com misericórdia para as pessoas que vivem em miséria humana. Não tenha pena! Pena imobiliza! Misericórdia ganha a força do coração e mobiliza para uma ação em direção a outra pessoa! Que Deus nos abençoe com a sua misericórdia e nos faça pessoas misericordiosas!
P. Carlos Eduardo Müller Bock, Pastor Sinodal do Sínodo Rio dos Sinos, com sede em São Leopoldo/RS